O que vem depois da penitência¹?

|outubro 7, 2019 |

Há certa discussão em torno de uma tentativa  de categorização das gerações contemporâneas, como “Boomers” – 1945 e 1965, Geração X -1965 a 1977, Geração Y -1977 e 2000, Geração Z – 2000 à contemporaneidade. 

Essas classificações, ainda instáveis, dizem respeito principalmente a certa relação entre tecnologia, trabalho e o humano. Contudo, comparando essas classificações às construções teóricas acerca de epistemologias, o campo do presente torna-se ainda mais nebuloso; confusões entre estruturalismo, “pós-estruturalismo”, modernidade, “pós-modernidade”, são exemplos das confusões que permeiam o pensamento crítico.

As dúvidas giram em torno de temas como: (a) quais as diferenças da sociedade do séc. XX para XXI? (b) quais as diferenças entre a epistemologia do séc. XX e XXI? (c) como as gerações se percebem e interagem entre si nesse meio? Pensar em continuidades e rupturas auxilia-nos na compreensão do hoje, afastamento da linearidade, desenho de campos e de comunicações.

O coração desta discussão, tem o condão de “fazer saltar o presente do continuum do tempo histórico”²,  como ensina Benjamin. Pensar o presente é tremendo desafio e perigo que se torna por isso mesmo uma exigência para o pensamento filosófico.

Isto porque o primeiro e talvez maior risco sobre a noção cronológica de tempo, é sua vinculação com a noção de progresso, como se estivéssemos sempre na ponta da história e isso acarretasse num ápice civilizatório, marco cultural superior a demais formas de sociedades históricas. Além disso, mesmo dentro do atual, certos modos de vida insistem em alçar a totalidade, o bem viver que Boaventura³ explica, formas de viver que se afastam da experiência e desqualificam existências divergentes, exercendo força magnética à padronização.

A era pós-industrial traz novas conexões  entre as formas de educação – seus índices de desempenho no Brasil -, e o mercado de trabalho, demonstram certo funcionamento, dinâmica social que implica na construção das subjetividades. As novas tecnologias, símbolos do contemporâneo, também implicam em novas formas de controle4: liberdade para fazer seu horário  enquanto trabalha 12 horas num UBER.

Todavia, novamente questionamento fundamental, esse desenho do hoje constituiria uma noção de progresso? É possível atribuir qualidades a ela? O que seria a história para o progresso?  A isso, escreve Benjamin:

Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval5.(g.n)

Quadro de Paul Klee, pintado em 1920

Há uma inevitabilidade do progresso, na maneira como exposta acima, que faz pensar em como puxar os trilhos de vagão, dessa locomotiva do progresso. Todavia, enquanto não encontramos tal parada, questionamos constantemente para onde vamos, a que sentido caminha nossas vidas, nossa história. A isto, não acredito em uma suposta crise, há apenas o progresso que arrasta o anjo da história. A pergunta é para onde nos destinamos, nós, os “ modernos”, ou “pós-modernos”.

A isto trago   à cena as contribuições de Flusser e Foucault. Para ambos, desde o séc. XVII até o XX, quatro epistemes compuseram a humanidade, ou quatro gerações andaram sobre a terra. Viveram, inclusive, quatro  momentos bem marcados, “ culpa, maldição, castigo e penitência”6.  

A nós, geração X, Y, que seja, a pergunta, o que vem depois da penitência? O que vêm depois do séc. XX? Da modernidade? Para Flusser, a respostas é apenas o abismo, para Foucault, a morte do homem7. A idade moderna, o nada, “o progresso enquanto perda do centro de gravidade”8, relembram-nos do nosso infinito cansaço e de um saudosismo a tempos remotos (quiçá sabemos se de fato houveram) em que a capacidade de vida ativa era em verdade potência exercida. Sobretudo, não há que se falar em redenção, ela, justamente o liame ao progresso9. 

A parábola da Ovelha Perdida do livro de Lucas serve de exemplo. Nela o pastor cuida de todas e de cada uma ao mesmo tempo, além disso, é capaz de sacrificar todo o bando por uma, coletivo e singular. Assim, se o séc. XX marcou-se pelo estado de bem-estar social, como Foucault aponta, pelas “técnicas de governo pastoral10, o século XXI é do estado neoliberal e já não há nenhum pastor. Resta as ovelhas assumirem o caminho por si, abandonando o bando, tomando para si a função de pastor sem bando, levando a si pelos prados nem tão verdejantes.

Não há nem em se falar de Deus, visto que está morto, nós os matamos, a não ser se elevarmos o capitalismo à religião, religião que não possui teologia, apenas culto infinito, “não há expiação, apenas culpa”11. É como se não houvesse um depois da penitência, ou como se o depois fosse apenas o antes, ou seja, culpabilização infinita e repetição.

A nossa geração, seja ela qual for, necessita pensar em novas formas de solidariedade, de comunicação, de noções de comum, do significado do humano e uma rearticulação entre o desejo e a liberdade. 

[1] O presente texto trata-se de uma breve introdução à discussão proposta por Flusser, numa obra recentemente resgatada e publicada em 2017, “O Último Juízo: Gerações”, volumes I e II, em que o autor aborda o limite de modernidade a partir de um breve histórico.[2] Benjamin, Walter. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 190.[3] Construindo as Epistemologias do Sul. Antologia. Vol I. Buenos Aires: CLACSO, 2018.[4] A isto, vale a leitura do clássico fragmento de Deleuze sobre as sociedades do controle: Conversações, São Paulo: 34, 2017.[5] Benjamin, Walter. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 17.[6] FLUSSER, Villém. Último Juízo: Gerações: I. É Realizações: São Paulo, 2017, p. 328.[7] Foucault, Michel. As Palavras e as Coisas. Martins fontes, São Paulo, 2002.[8] Idem, p. 97.[9] Benjamin, Walter. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 180[10] Foucault, Michel. Segurança,Território e População.São Paulo:M. Fontes, 2004, p. 350[11] Benjamin, Walter. O Capitalismo como Religião. São Paulo, Boitempo, 2013, p. 22.

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